segunda-feira, 28 de abril de 2014

LETRAS ENSOPADAS

Ao contrário da maioria, era indiferente ao tempo, se dia de sol ou de chuva tanto fazia, pouco importava, pois qualquer que fosse o estado renderiam incontáveis estórias. Pois estou numa terra muito fértil, que de tão fértil dispensa rega, os factos e personagens da cidade perdoam a inconstância das águas da natureza e a incompetência do homem em distribuí-las.

Não assumi partido em relação ao tempo tal como os outros divididos entre os pró chuva purificadora e fiscalizadora ou contra chuva condenadora e destruidora, os pró sol de praia ou contra sol da catinga, os pró céu nublado de sombra ou os contra céu nublado depressivo, os pró frio estímulo de procriação ou contra frio estimulante da preguiça, os pró humidade ou os contra humidade, os pró vento e os contra vento, por estas bandas havia de quase tudo no clima. Os argumentos a fundamentar cada uma das opções vão desde os económicos, políticos aos culturais com direito a fervorosos praticantes na feiticista arte de amarrar chuvas embrulhadas numa lenda mística.

Toda a parafernália meteorológica a mim era completamente irrelevante, apenas interessava o drama, a tragédia, a comédia, o romance ou o terror que poderia oferecer. Neste aspecto sim, estava acima do bem e do mal, era como que um deus menorzinho para esta questão em particular. Assim podia ser uma bela manhã de alegre sol e suave vento; como, num céu completamente coberto de nuvens ameaçadoras anunciando diurno breu, não mudaria o meu humor. Confesso sentir um secreto prazer nos falhanços dos serviços de previsão meteorológica, porque expunham a frustração dos seus crentes, era o máximo de partido que tirava.

De resto era de um cinismo completo diante das lamúrias do caos em que a cidade se tornava com as chuvas - se é que havia ordem alguma -, aos apelos dos desconsolados de tanta secura, as queixas das vítimas de doenças causadas pela humidade do ar, enfim todas estas preocupações pertenciam a um mundo a parte; pelo menos no que as causas diziam respeito, porque o que queria mesmo, o que deseja profundamente, eram as diversas reacções que a diversidade do tempo propiciavam.

Porém nunca escondi a razão de tanto descaso: letras! Sentia-me o dono das letras, sentia-me o proprietário das sílabas, o todo poderoso das palavras. Com as palavras construía universos paralelos, desconstruía a realidade, fomentava lendas, narrava façanhas, os vocábulos eram como que pedra filosofal ou elixir da vida eterna. Aí sim me importava, interessava doentiamente em descrever tudo o que existe, existiu e existirá, absolutamente tudo, sem limites, sem comprometimento e o único desafio era de resgatar a mágica da palavra como quando 'no princípio era o verbo...'. A minha palavra era escrita e por isso mesmo me bastava a tinta e o papel, ferramentas desconsideradas se do estado do tempo se tratar, aqui não há espaço para cata-ventos, termómetro, anemómetro, barómetro ou pluviómetro.

Fiz-me a via alheio, alheio não; ignorando qualquer que fosse o tempo. Bastava-me observar e em seguida copiar, criar ou recriar ocorrências baseadas ou não no tempo somado clima, porém o clima era muito longo e levava-me a perder o fio de uma boa história, a menos que fizesse dele sinónimo do tempo. Ouvi um murmúrio sobre chover que desprezei. Depois senti certa brisa, e vislumbrei diminuição da luz, ouvi ao longe nuvens colidirem e produzirem trovões uns mais ensurdecedores que outros, assistidos por valentes relâmpagos. Divisei chuva, o que não aqueceu nem arrefeceu; continuei a caminhar pensando no lucro literário deste fenómeno. Rapidamente pingos sucessivos precipitavam-se a cair fugidos de nuvens que abundavam o céu, chegadas ao chão faziam correntes de água, transformando caminhos em pequenos rios. Assistia a tudo maravilhado, pensava sobretudo na capacidade distinta da água de esquivar os obstáculos procurando caminhos para junto do mar. Fantástico!

Deleitado nesses pensamentos procurei condições para escrever, foi aí que me dei conta, do desespero das pessoas por estarem a molhar, da força da chuva a demolir obras mal construídas, das cansadas estradas a abrirem crateras, na energia eléctrica a desaparecer, era uma reacção em cadeia interessantíssima, pensava eu. Procurei com os olhos algum abrigo! Tristemente dei-me conta de que não poderia escrever a minha estória à chuva, tentei olhar para o céu, e de repente as gotas eram mais grossas e agressivas... Ao lado vislumbrei uma esplanada pareceu-me ser o local ideal, lá chegado sentei-me não sem antes o garçom perguntar se ia consumir alguma coisa, uma vez que só podiam ser abrigados clientes, achei um autêntico disparate, mas não podia perder o foco, havia uma estória a ser escrita.

Pelo menos era essa a intenção, escrever... Olhei para a caneta não funcionava, e o papel inútil para a escrita, chamei rapidamente o garçom e fiz o pedido: - uma caneta, papel A4 branco e chá. O rapaz retrucou: - a caneta pode-se ver, porém o único papel que temos para dar é o guardanapo, deve chegar para escrever um lembrete. Aquelas palavras ressoavam-me na cabeça como golpes, sentia raiva daquela estúpida esplanada que não servia papel em condições, vociferei ao moço sobre a importância de uma estória da chuva. Este indignado respondeu que devia dar-me por feliz, por perder apenas a estória, pois os outros perdiam tudo o que tinham na vida; de seguida foi-se embora.

Pensei no meu drama das letras ensopadas, que foram com a água sabe-se lá para onde? Provavelmente acompanhariam o seu ciclo e num dia qualquer voltariam em forma de nuvem, humidade ou gelo, sentia-me vazio pois a minha estória ia a medida que toda aquela água caia, olhava triste para as pessoas ao lado que dialogavam acerca das suas perdas, da despreparação da cidade para tanta água de S. Pedro. Mas as chuvas sempre existiram, não sei porque é que se tornaram numa tragédia. Com mais alguns minutos de pesar, compreendi a expressão dos pobres que nada tinham, mas que tudo perdiam nas intempéries do tempo.

Fez-se luz e a indiferença não era mais minha, mas do tempo esse malandro que não queria saber da preparação de nada nem de ninguém, se pobres ou ricos, vinha na forma de seca ou de tempestade desinteressado se necessário ou não. O tempo esse sim era o verdadeiro deus, e exigia do homem adoração, reverência, poderoso como só ele. Afinal ele o vilão da obra humana, tão velho como a própria Terra, ele o causador do bem e do mal, partícipe do gene da vida.

Perdi a minha estória e vivia na hipocrisia do desconsolo do meu próprio drama, punido pelo pecado da indiferença, podia ter sido mais solidário. Foi-se a história, ficou-me o drama pessoal misturado com lama e destruição de uma postura. Pobre de mim e das minhas letras ensopadas.

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