Ao contrário da maioria, era indiferente ao tempo, se dia de
sol ou de chuva tanto fazia, pouco importava, pois qualquer que fosse o estado
renderiam incontáveis estórias. Pois estou numa terra muito fértil, que de tão
fértil dispensa rega, os factos e personagens da cidade perdoam a inconstância
das águas da natureza e a incompetência do homem em distribuí-las.
Não assumi partido em relação ao tempo tal como os outros divididos
entre os pró chuva purificadora e fiscalizadora ou contra chuva condenadora e
destruidora, os pró sol de praia ou contra sol da catinga, os pró céu nublado
de sombra ou os contra céu nublado depressivo, os pró frio estímulo de
procriação ou contra frio estimulante da preguiça, os pró humidade ou os contra
humidade, os pró vento e os contra vento, por estas bandas havia de quase tudo
no clima. Os argumentos a fundamentar cada uma das opções vão desde os
económicos, políticos aos culturais com direito a fervorosos praticantes na
feiticista arte de amarrar chuvas embrulhadas numa lenda mística.
Toda a parafernália meteorológica a mim era completamente
irrelevante, apenas interessava o drama, a tragédia, a comédia, o romance ou o terror
que poderia oferecer. Neste aspecto sim, estava acima do bem e do mal, era como
que um deus menorzinho para esta questão em particular. Assim podia ser uma bela
manhã de alegre sol e suave vento; como, num céu completamente coberto de nuvens ameaçadoras anunciando diurno
breu, não mudaria o meu humor. Confesso
sentir um secreto prazer nos falhanços dos serviços de previsão meteorológica,
porque expunham a frustração dos seus crentes, era o máximo de partido que
tirava.
De resto era de um cinismo completo diante das lamúrias do
caos em que a cidade se tornava com as chuvas - se é que havia ordem alguma -,
aos apelos dos desconsolados de tanta secura, as queixas das vítimas de doenças
causadas pela humidade do ar, enfim todas estas preocupações pertenciam a um
mundo a parte; pelo menos no que as causas diziam respeito, porque o que queria
mesmo, o que deseja profundamente, eram as diversas reacções que a diversidade
do tempo propiciavam.
Porém nunca escondi a razão de tanto descaso: letras!
Sentia-me o dono das letras, sentia-me o proprietário das sílabas, o todo
poderoso das palavras. Com as palavras construía universos paralelos,
desconstruía a realidade, fomentava lendas, narrava façanhas, os vocábulos eram
como que pedra filosofal ou elixir da vida eterna. Aí sim me importava,
interessava doentiamente em descrever tudo o que existe, existiu e existirá,
absolutamente tudo, sem limites, sem comprometimento e o único desafio era de resgatar
a mágica da palavra como quando 'no princípio era o verbo...'. A minha palavra
era escrita e por isso mesmo me bastava a tinta e o papel, ferramentas
desconsideradas se do estado do tempo se tratar, aqui não há espaço para
cata-ventos, termómetro, anemómetro, barómetro ou pluviómetro.
Fiz-me a via alheio, alheio não; ignorando qualquer que
fosse o tempo. Bastava-me observar e em seguida copiar, criar ou recriar
ocorrências baseadas ou não no tempo somado clima, porém o clima era muito
longo e levava-me a perder o fio de uma boa história, a menos que fizesse dele
sinónimo do tempo. Ouvi um murmúrio sobre chover que desprezei. Depois senti
certa brisa, e vislumbrei diminuição da luz, ouvi ao longe nuvens colidirem e
produzirem trovões uns mais ensurdecedores que outros, assistidos por valentes
relâmpagos. Divisei chuva, o que não aqueceu nem arrefeceu; continuei a
caminhar pensando no lucro literário deste fenómeno. Rapidamente pingos
sucessivos precipitavam-se a cair fugidos de nuvens que abundavam o céu,
chegadas ao chão faziam correntes de água, transformando caminhos em pequenos
rios. Assistia a tudo maravilhado, pensava sobretudo na capacidade distinta da
água de esquivar os obstáculos procurando caminhos para junto do mar.
Fantástico!
Deleitado nesses pensamentos procurei condições para
escrever, foi aí que me dei conta, do desespero das pessoas por estarem a
molhar, da força da chuva a demolir obras mal construídas, das cansadas
estradas a abrirem crateras, na energia eléctrica a desaparecer, era uma
reacção em cadeia interessantíssima, pensava eu. Procurei com os olhos algum
abrigo! Tristemente dei-me conta de que não poderia escrever a minha estória à
chuva, tentei olhar para o céu, e de repente as gotas eram mais grossas e
agressivas... Ao lado vislumbrei uma esplanada pareceu-me ser o local ideal, lá
chegado sentei-me não sem antes o garçom perguntar se ia consumir alguma coisa,
uma vez que só podiam ser abrigados clientes, achei um autêntico disparate, mas
não podia perder o foco, havia uma estória a ser escrita.
Pelo menos era essa a intenção, escrever... Olhei para a
caneta não funcionava, e o papel inútil para a escrita, chamei rapidamente o garçom
e fiz o pedido: - uma caneta, papel A4 branco e chá. O rapaz retrucou: - a
caneta pode-se ver, porém o único papel que temos para dar é o guardanapo, deve
chegar para escrever um lembrete. Aquelas palavras ressoavam-me na cabeça como
golpes, sentia raiva daquela estúpida esplanada que não servia papel em
condições, vociferei ao moço sobre a importância de uma estória da chuva. Este
indignado respondeu que devia dar-me por feliz, por perder apenas a estória,
pois os outros perdiam tudo o que tinham na vida; de seguida foi-se embora.
Pensei no meu drama das letras ensopadas, que foram com a
água sabe-se lá para onde? Provavelmente acompanhariam o seu ciclo e num dia
qualquer voltariam em forma de nuvem, humidade ou gelo, sentia-me vazio pois a
minha estória ia a medida que toda aquela água caia, olhava triste para as pessoas
ao lado que dialogavam acerca das suas perdas, da despreparação da cidade para
tanta água de S. Pedro. Mas as chuvas sempre existiram, não sei porque é que se
tornaram numa tragédia. Com mais alguns minutos de pesar, compreendi a expressão
dos pobres que nada tinham, mas que tudo perdiam nas intempéries do tempo.
Fez-se luz e a indiferença não era mais minha, mas do tempo
esse malandro que não queria saber da preparação de nada nem de ninguém, se
pobres ou ricos, vinha na forma de seca ou de tempestade desinteressado se
necessário ou não. O tempo esse sim era o verdadeiro deus, e exigia do homem
adoração, reverência, poderoso como só ele. Afinal ele o vilão da obra humana, tão
velho como a própria Terra, ele o causador do bem e do mal, partícipe do gene
da vida.
Perdi a minha estória e vivia na hipocrisia do desconsolo do
meu próprio drama, punido pelo pecado da indiferença, podia ter sido mais
solidário. Foi-se a história, ficou-me o drama pessoal misturado com lama e
destruição de uma postura. Pobre de mim e das minhas letras ensopadas.