Passaram 15 dias desde a criação do evento no Facebook
denominado Marcha a Não-violência, o que também ficou para trás foi a ‘ressaca’
de quem como eu viveu todos os momentos desta; o antes, o durante e o depois.
Como simples usuário da rede social acompanhei ao desespero
de familiares e amigos a procura de Jorge Valério, no que primeiro parecia
vulgar brincadeira de spam ou pishing, acabou na segunda-feira 1 de
Outubro, a confirmar a morte do jovem também conhecido musicalmente por Jay Jay.
A desolação, o choque e o medo apoderaram-se de mim, não o conhecia, nunca o
vira nem mais gordo ou mais magro, porém, os relatos da forma bárbara como
tinha acabado a sua vida, desafiava de todas as formas a minha compreensão
enquanto humano. Na verdade aquela notícia para mim, era ‘o demais’ de tanta
violência, era o atingir da exaustão de tantos outros relatos cruéis e
trágicos, de uma sociedade que afinal era sanguinária, sombria e algo doentia.
A única reacção, diante da impotência que sentia ante o
tamanho horror e dor, foi juntar-me a corajosa Níria, que com a Euma e a Dânia
propunham-se a sair Luanda adentro a gritar que bastava tanta violência. Primeiro
partilhei o evento, depois entrei em contacto com elas a mostrar toda a minha
disponibilidade; e como que em telepatia, ligou-me o Sorge amigo e colega de
outras causas que também entrara para a fila dos indignados e já tinha falado com
as meninas, daí a surgir o René que já estava mais ou menos informado e a
Marisa (os únicos que entraram para o grupo sem ter contacto prévio sobre o
evento virtualmente), foi só necessitar de pessoas disponíveis para a
subscrição da Comunicação dirigida ao Governo Provincial de Luanda para a
Realização da marcha.
Neste mesmo dia 3 de Outubro de 2012, quarta-feira estávamos
decididos a sair a rua e esta determinação ganhou mais força, após a primeira
reunião no Cassenda, a luz de velas na casa do Sorge, éramos desconhecidos uns
dos outros, pelo menos as raparigas versus rapazes mais a Marisa, mas o repúdio
a violência juntou-nos e deu-nos uma identidade de grupo só vista em amigos de
infância. Cúmplices, traçamos o plano de acção e não dormimos até que o que nos
propusemos fazer estivesse completo.
Na internet, mais propriamente Facebook nossa base de
mobilização, existia uma onde de incentivo e procura de mais informação sobre o
evento, uma das questões mais confusas era a da hora, visto que na criação do
evento marcávamos para as 9 horas de sábado, e as pessoas não superavam a
alteração que afinal tinha sido feita no mesmo dia. Mas apareciam coisas confusas,
como a rebaixarem a vida humana à falta de luz, o repúdio por ter sido ‘somente’
pela morte do Jay Jay sendo que tinham havido várias, enfim incompreensões sobre
as reais intenções de um grupo de jovens que apenas não queria cruzar os bruços
diante da selvajaria dos crimes violentos de qualquer natureza,
independentemente da sua vítima ou predador.
Não faltou inclusive assédios políticos de todos os lados, a
que rapidamente rejeitamos, reiterando que a marcha não era
político-partidária, religiosa, desportivo-cultural, com finalidade lucrativa
ou de qualquer outra índole que não fosse o repúdio a violência de todas as
suas formas e contra todos independentemente da sua condição social, económica,
rácica, género, etnia, ou qualquer outra.
Fomos intransigentes no nosso propósito, foi exaustivo. Nalguns
momentos desentendíamos nos pontos de vista, porém partilhávamos tudo, enquanto
cultivávamos amizade entre nós, respeito e disciplina pelo trabalho, vivemos
bons momentos de camaradagem.
Recebemos apoios de muita boa gente que se juntou a causa,
pois eram daqueles que gostavam mesmo de ver um verdadeiro movimento cívico a
emergir, o movimento espontâneo de cidadão a fazer pressão social, a cultivar o
pensar Angola antes de qualquer divergência que existisse entre nós angolanos e
assim fizemos. Gritamos na imprensa, esclarecemos as pessoas, atendemos o
telefone, mandamos mensagens, apagamos comentários, sempre no sentido de se
respeitar o objectivo preconizado.
Enfim o sábado, já estávamos no dia D, a poucas horas da
hora H, nós qual lavradores levantamo-nos cedo, escrevemos o manifesto,
confirmamos os escuteiros, estivamos a água, testamos os megafones, montamos os
dísticos, falávamos com os agentes da ordem e os bombeiros, envergamos as t-shirt’s,
recebíamos as pessoas estávamos quase prontos para marchar…
Até que enquanto concertávamos o esquema para partir, fomos
abruptamente interrompidos com a informação de se estava a distribuir panfletos
com nomes de assassinos. Ficamos espantados, porque antes alertámos que não era
uma marcha de vingança e a família do Jay Jay, principalmente seu pai, senhor
Cristo foi extremamente compreensível entendeu o propósito da marca e encarnou
o espírito, os parentes e amigos foram muitíssimos úteis e nos apoiaram em
grande medida, sem eles a marcha seria um pouco menos. Então quem estaria a
causar tal distúrbio, antes mesmo que tomássemos conta da situação vimos civis
a agredir outros, nos apercebemos serem na verdade os denominados ‘centraleiros’
que desde o primeiro momento juntaram-se a causa e nós não compreendíamos o que
se tinha passado, apenas pedimos que se acalmassem e explicassem. Não
entendemos até hoje, entretanto eles continuaram a marcha connosco em frente
levando um dos dísticos, apreciamos a
capacidade de superação.
Depois destas desinteligências, seguiram-se as palavras do
Réne com o código(zinho) de conduta a ser observado durante a marcha, da Níria
sobre o propósito da marcha e do Cónego para que marchássemos com calma, foi
sugestão da família do Jay Jay e nós aceitamos. Assim, quando eram 17horas em
ponto, a nossa hora H, a marcha começou, foi difícil, sinuosa porque fazíamos
questão de não sujar, nem destruir a Baía de Luanda recém reabilitada, na
estrada estavam rapazes de motorizadas, bicicletas e patins a seguirem as
carrinhas com água que distribuímos ao pessoal, foi tudo espontâneo e
voluntário.
Houve um momento em que ficou impossível caminha no passeio
e entramos para a estrada. A multidão além das palavras de ordem umas nossas e
tantas outras espontâneas, a dado momento soltara-se os balões brancos
distribuídos no início, nessa altura olhei para trás e tive a real noção de que
afinal éramos milhares a gritar contra a violência, nesses milhares viam-se
mesmo alguns rostos mediáticos.
Foi escurecendo, acenderam-se a velas em memória de todas as
vítimas de violência, neste momento estava anestesiado de todo o cansaço de
correria de frente para trás, distribuição de água, algumas incompreensões com
os meus colegas organizadores, gritos no megafone e fiquei na contemplação até
ao ajuntamento de todo o mundo na areia no término da marcha em frente a casa
do desportista.
Lembra-me de ver os nossos amigos do staff sempre
incansáveis desde as primeiras horas da manhã a ajudarem as pessoas, de
estarmos em discussão interna sobre uma alteração básica no programa, calei-me
queria ter fôlego para ler o manifesto; e fiz, só mais tarde é que vi
fotografias de pessoas a chorarem enquanto eu lia, mas durante a leitura nunca
me senti sozinho, e não era pelo facto de a imprensa estar defronte a mim, mas
porque a cada basta, os participantes da marcha repetiam comigo basta, basta,
basta.
Nós só queríamos chamar a atenção da sociedade sobre o mal
da violência entre nós, mas tivemos o bónus da comunhão, de congregarmos
pessoas de variada diferenças desde origem, forma de pensar à estar. A acusação
de que éramos de uma elite a qual o Jay Jay pertencia e defendíamos não nos
arreliava, afinal não era um desfile para que soubessem quem somos, nem tão
pouco desfilarmos a nossas biografias. Só queríamos dizer basta de tanta
atrocidade.
Findas as contas as pessoas falam connosco, que devíamos
continuar e assim faremos, ainda não sabemos como mas só o facto de termos
levado mais de 3 mil pessoas a rua, fez com que sentíssemos que podemos fazer
alguma diferença, com pequenos gestos e pequenas acções. Só queríamos fazer
pressão social, só queríamos dar voz as vítimas, mas fizemos também amigos,
reconheceram-nos enquanto cidadãos activos e seremos enquanto acharmos que
determinadas causas precisam de nós.
Estas palavras são para a Níria que nunca desistas dos teus
sonhos, Euma sou teu fã, Dânia a tua energia é fantástica, Marisa o meu
afilhado já tem história, Sorge outra vez juntos noutra luta, de tantas outras
que teremos e René obrigado amigo, vocês fizeram-me acreditar mais no futuro,
na capacidade e sensibilidade das pessoas.
Obrigado!
Em cima, da esquerda para direita: Marisa, Dânia, Níria e Euma. Em baixo, da esquerda para a direita: René, Sorge e Adalberto. |